5 de dez. de 2011

Carnavais

Antes do carnaval, paixões alucinadas
Estão a caminho, febris e lascivas
Em plena avenida aparecem
Travestidas de todos os prazeres.

Quarta-feira de cinzas arrumam bagagem
E vão por aí,
Rabiscando promessas ainda érbias.
Esperam o próximo ano.


Everaldo Augusto.







Vida de Urso

Esqueço-me sempre de aniversário,
Sou como um urso balú na floresta dos homens.
E como todo urso, urbano e ignaro,
Sei que a vida não tem data, é um dia após o outro,
Sem marcas pendentes no calendário.

Meus amigos fazem anos, eu faço de conta.
Não leio telegramas, não recebo emissários,
Não guardo sombras de ontem, Só uso o necessário,
E se vires me perguntar qual a minha fortuna,
Não sei, só sei que os anos são extraordinários.


Everaldo Augusto.

3 de dez. de 2011

Tu Tens Um Medo

Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.


Cecília Meireles.

Máquina Breve

O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.

Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.


Cecília Meireles.

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar


Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.


O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.


Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Cecília Meireles.

Noções

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...


Cecília Meireles.

12 de nov. de 2011

Idas E Volta

Por quão teu sofrimento nele insiste
Se ontem dele bravio tu fugiste
Ainda que tardio foi o regresso
Foi falha tua vinda, sem progresso.

Ainda que ludíbrio o coração
O desejo da mágoa já corrói
Outra vez provocar tal aflição
Finge estar tudo bem a dor que dói.

Deveras amanhã bem mais serena
De taciturno já abre a boca e fala
As palavras de amor bem mais amenas.

Ah! Enaltecer n´alma harmonia
Sentimento de amor despedaçado
Por quanto...Restaurado a agonia.


Frasncisco Das Chagas Esmeraldo Mourão.

Apenas Preconceito

Que se esbagace o meu...To nem aí
Mas vou continuar olhando os teus
Pra que se preocupar, ora! Eu já vi
Eles são bem bonitos, viste o meu?

Esse olhar fosco e vesgo quase não
Enxerga coisa alguma, mas que coisa!
Olha direito, Vês! Meu coração
está desmilinguido também doído.

Lindo demais olhar nos olhos teus
Eu sei! Bastante tortos, mas eu gosto
o que há de fazer! Então: Olha o meu.

Não diga que meus olhos são pelados
foi acidente, queimou os cílios tudo
Ah sei! Os seus são bastante cabeludos.


Francisco Das Chagas Esmeraldo Mourão.

Prega e Ludibria

Eu vejo teu semblante cru, desnudo
Jesus maravilhoso, olha só o diabo
Encangado e enganando todo mundo
Aí vem ele liso feito quiabo.

Seguiu o povo de Deus, um vagabundo
E vai te azucrinar, pobre coitado
Bem feito tu és oriundo, bicho imundo.
Deus te castigará, ele bem irritado.

Um! Teu procedimento de hostil
Só praticas o mal, vais ranger dentes
És infernal, tremendo quão imbecil.

Dizes adorar, fala, de quem?...
Do demônio? Ladrão tu vais pagar
Rouba dos inocentes, tu, ninguém.


Francisco Das Chagas Esmeraldo Mourão.

As Cordas Da Viola

As cordas da viola vão tocando
a canção que é tão linda quanto infinda —
harmonia que a vida ensina e brinda
e a mão segue ligeira pespontando.

E a vida canta, vai unindo linda
as notas a luzir sob o comando
da voz com que se vão acasalando
em melodia hialina que não finda.

Lá uma corda quebra quando em quando,
e dessa viola as cordas não se trocam...
mas tocam as que ficam: tocam, tocam...

E as cordas da viola vão quebrando...
Até que já nos resta só memória —
o tempo em que tiníamos de glória


Laerte Antônio.

Mulher Ao Espelho

Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.


Cecília Meireles.

16 de out. de 2011

A Vida

A coisa mais injusta sobre a vida é a maneira como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso.

Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo. Ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante pra poder aproveitar sua aposentadoria. Aí você curte tudo, bebe bastante álcool, faz festas e se prepara para a faculdade.

Você vai para colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando. E termina tudo com um ótimo orgasmo! Não seria perfeito?


Charles Chaplin.

15 de out. de 2011

O Velho Sertanejo

Quando a tarde vem, e o sol vermelho,
paira no horizonte, me ofuscando a vista,
vem um ancião, que me dá conselhos...
Diz que é santa a fé, que almeja a conquista.

E nesses conselhos eu vou me espelhando
com o passar dos anos, e o passar dos dias,
olho pro meu pai já um veterano
quem sabe adiante eu lhe traga alegria.

Este sertanejo que vive na caatinga,
que abre um sorriso tão encantador,
muitas vezes chora, mais nunca ele xinga
que bem diz a terra, e declara amor.

Este simples homem, que fala com as plantas,
que advinha a chuva ao olhar pro céu,
que se deita cedo, e cedo se levanta...
Que cultiva abelhas, e não lhe rouba o mel.

Antonio Hugo.

Mar e Lua

Amaram o amor urgente
As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar
Amavam o amor proibido
Pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar

E foram ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia
E à beira-mar

Chico Buarque de Holanda.

11 de out. de 2011

Pra Alminha Boa

Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola,
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente...

Mário Quintana.

10 de out. de 2011

O Palhaço

Ontem via-se-lhe em casa a esposa morta
E a filhinha mais nova tão doente!
Hoje, o empresário vai bater-lhe à porta,
Que a platéia o reclama impaciente.

Ao palco em breve surge...Pouco importa
O seu pesar àquela estranha gente...
E ao som das ovações que os ares corta,
Trejeita, e canta, e ri nervosamente.

Aos aplausos da turba ele trabalha
Para esconder no manto em que se embuça
A cruciante angústia que o retalha,

No entanto, a dor cruel mais se lhe aguça
E enquanto o lábio trêmulo gargalha,
Dentro do peito o coração soluça.

Pe. Antônio tomás.

O Irapuru

Dizem que o irapuru, quando desata
A voz - Orfeu do seringal tranqüilo -
O passaredo, rápido, a segui-lo,
Em derredor agrupa-se na mata.

Quando o canto, veloz, muda em cascata,
Tudo se queda, comovido, a ouvi-lo:
O canoro sabiá susta a sonata,
O canário sutil cessa o pipilo.

Eu próprio sei quanto esse canto é suave;
O que, porém, me faz cismar bem fundo
Não é, por si, o alto poder dessa ave:

O que mais no fenômeno me espanta,
É ainda existir um pássaro no mundo
Que se fique a escutar quando outro canta!

Humberto de Campos.

O Coração

O coração é a sagrada pira
Onde o mistério do sentir flameja.
A vida da emoção ele a deseja
Como a harmonia as cordas de uma lira.

Um anjo meigo e cândido suspira
No coração e o purifica e beija...
E o que ele, o coração, aspira, almeja
É sonho que de lágrimas delira.

É sempre sonho e também é piedade,
Doçura, compaixão e suavidade
E graça e bem, misericórdia pura.

Uma harmonia que dos anjos desce.
Que como estrela e flor e som floresce
Maravilhando toda a criatura!

Curs e Sousa.

O Condenado

A praça estava cheia. O condenado
Transpunha nobremente o cadafalso.
Puro de crime, isento de pecado,
Vítima augusta de indelével falso.

E na atitude do Crucificado,
O olhar azul pregado n`amplidão,
Pude rever naquele desgraçado
O drama lutuoso da Paixão.

Quando do algoz cruento o braço alçado
Se dispunha a vibrar sem compaixão
O golpe na cabeça do culpado

Ele, o algoz - o criminoso - então,
Caiu na praça como fulminado
A soluçar: perdão, perdão, perdão!

Augusto dos Anjos.

O Acendedor de Lampiões

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!

Jorge de Lima.

Mãos Que os Lírios Invejam

Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas
Para aliviar de Cristo os sofrimentos,
Cujas veias azuis parecem feitas
Da mesma essência astral dos olhos bentos;

Mãos de sonho e de crença, mãos afeitas
A guiar do moribundo os passos lentos,
E em séculos de fé, rosas desfeitas
Em hinos sobre as torres dos conventos.

Mãos a bordar o santo Escapulário,
Que revelastes para quem padece
O inefável consolo do Rosário;

Mãos ungidas no sangue da Coroa,
Deixai tombar sobre a minha Alma em prece
A bênção que redime e que perdoa !

Alphonsus de Guimarães.

Homo Infimus

Homem, carne sem luz, criatura cega.
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!

O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!

Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.

Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: o de chorar!

Augusto dos Anjos.

A Aeronave

Cindindo a vastidão do Azul profundo,
Sulcando o espaço, devassando a terra,
A Aeronave que um mistério encerra
Vai pelo espaço acompanhando o mundo.

E na esteira sem fim da azúlea esfera
Ei-la embalada n'amplidão dos ares,
Fitando o abismo sepulcral dos mares,
Vencendo o azul que ante si s'erguera.

Voa, se eleva em busca do infinito,
É como um despertar de estranho mito,
Auroreando a humana consciência.

Cheia da luz do cintilar de um astro,
Deixa ver na fulgência do seu rastro
A trajetória augusta da Ciência.

Augusto dos Anjos.

Desecanto

Muitas vezes cantei nos tempos idos,
Acalentando sonhos de venturas;
Então da lira a voz suave e pura
Era-me um gozo d'alma e dos sentidos.

Hoje vejo esses sonhos convertidos
Num acervo de penas e amargura,
E percorro da vida a estrada escura
Recalcando no peito os meus gemidos.

E se tento cantar como remédio
Às minhas mágoas, ao sombrio tédio
Que lentamente as forças me quebranta,

Os sons que arranco à pobre lira, agora
Mais parecem soluços de quem chora
Do que a doce toada de quem canta.

Pe. Antônio Tomás.

Defesa

Cada alma é um mundo à parte em cada peito...
Nem se conhecem, no auge do transporte,
Os jungidos do vínculo mais forte,
Almas e corpos num casal perfeito:

Dormindo no calor do mesmo leito,
Voltando os corações à mesma sorte,
Consigo levam à velhice e à morte
Um recato de orgulho e de respeito...

Ficam, por toda a vida, as duas vidas
Na mais profunda comunhão estranhas,
No mais completo amor desconhecidas.

E os dois seres, sentindo-se tão perto,
Até num beijo, são duas montanhas
Separadas por léguas de deserto...

Olavo Bilac.

Consolação

Penso, às vezes, nos sonhos, nos amores,
Que inflamei à distância pelo espaço;
Penso nas ilusões do meu regaço
Levadas pelo vento a alheias dores...

Penso na multidão dos sofredores,
Que uma bênção tiveram do meu braço;
Talvez algum repouso ao seu cansaço,
Talvez ao seu deserto algumas flores...

Penso nas amizades sem raízes,
Nos afetos anônimos, dispersos,
Que tenho sob os céus de outros países...

Penso neste milagre dos meus versos:
Um pouco de modéstia aos mais felizes,
Um pouco de bondade aos mais perversos...

Olavo Bilac.

Ato de Caridade

Que eu faça o bem, e de tal modo o faça,
Que ninguém saiba o quanto me custou.
- Mãe, espero de ti mais esta graça:
- Que eu seja bom sem parecer que o sou.

Que o pouco que me dês me satisfaça;
E se, do pouco mesmo, algum sobrou,
Que eu leve esta migalha aonde a desgraça,
Inesperadamente, penetrou.

Que a minha mesa, a mais, tenha um talher,
Que seja, minha Mãe, Senhora nossa,
Para o pobre faminto que vier.

Que eu transponha tropeços e embaraços:
- Que eu não coma sozinho o pão que possa
Ser partido por mim em dois pedaços.

Djalma Andrade.

Acácia

Para a Acácia exaltar e definir, não basta
ser poeta e cantar as gamas da beleza.
É preciso ter na alma, eternamente, acesa,
a chama da emoção, mais límpida e mais vasta.

Não conheço outra flor de igual delicadeza,
mais terna, e pura, e amena, e humilde, e alegre e casta.
Em bênçãos de perfume envolve a mão que a afasta
do cacho em que esplendia, ornando a natureza.

Invejo o colibri, que, em tresloucada audácia,
acaricia e beija, e sorve, a quando e quando,
as essências sutis das pétalas da Acácia.

Hei de amar essa flor além de outra qualquer,
porque pressinto, a vê-la, ardente, insinuando,
no aroma que trescala, um cheiro de mulher !

Francisco Nobre.

Círculo Vicioso

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- "Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela! "
Mas a estrela, fitando a Lua, com ciúme:

- "Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela..."
Mas a Lua, fitando o Sol, com azedume:

- "Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume! "
Mas o Sol, inclinando a rútila capela:

- "Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"

Machado de Assis.

18 de set. de 2011

O Anel de Vidro

Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim - era vidro e logo se quebrou
Assim também o eterno amor que prometeste,
- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, -
Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim - era vidro e logo se quebrou

Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste


Manuel Bandeira.

Ode Aos Baianos

Duas vezes, Bahianos, me escolhestes
Para a voz levantar a pró da pátria
Na assembléia geral; mas duas vezes
Foram baldados votos.

Porém enquanto me animar o peito,
Este sopro de vida, que ainda dura
O nome da Bahia, agradecido
Repetirei com júbilo.

Amei a liberdade, e a independência
Da doce cara pátria, a quem o Luso
Oprimia sem dó, com riso e mofa —
Eis o meu crime todo.

Cingida a fronte de sangrentos loiros
Horror jamais inspirará meu nome;
Nunca a viúva há de pedir-me o esposo,
Nem seu pai a criança.

Nunca aspirei a flagelar humanos —
Meu nome acabe, para sempre acabe,
Se para o libertar do eterno olvido
Forem precisos crimes.

Morrerei no desterro em terra estranha,
Que no Brasil só vis escravos medram —
Para mim o Brasil não é mais pátria,
Pois faltou a justiça.


José Bonifácio.

Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fernando Pessoa.

A Você, Com Amor

O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia...
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar...

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda...

E a música inaudível...

O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar...

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris.


Vinícius de Moraes.

Cala, Meu Amor

Entra, meu amor
Bom você voltar
De onde vem você
Cansado assim?

Vejo tanta dor
No teu triste olhar
Este olhar que, outrora
Se acendia só pra mim

Cala, meu amor
Fala, meu amor
É melhor você nada contar

Venha aos braços meus
Que os abraços meus
Vão finalmente te fazer calar


Vinícius de Moraes.

Sangue de Africano

Aqui sombrio, fero, delirante
Lucas ergueu-se como o tigre bravo...
Era a estátua terrível da vingança...
O selvagem surgiu... sumiu-se o escravo.

Crispado o braço, no punhal segura!
Do olhar sangrentos raios lhe ressaltam,
Qual das janelas de um palácio em chamas
As labaredas, irrompendo, saltam.

Com o gesto bravo, sacudido, fero,
A destra ameaçando a imensidade...
Era um bronze de Aquiles furioso
Concentrando no punho a tempestade!

No peito arcado o coração sacode
O sangue, que da raça não desmente,
Sangue queimado pelo sol da Líbia,
Que ora referve no Equador ardente.


Castro Alves.

A Canoa Fantástica

Pelas sombras temerosas
Onde vai esta canoa?
Vai tripulada ou perdida?
Vai ao certo ou vai à toa?

Semelha um tronco gigante
De palmeira, que s'escoa...
No dorso da correnteza,
Como bóia esta canoa!...

Mas não branqueja-lhe a vela!
N'água o remo não ressoa!
Serão fantasmas que descem
Na solitária canoa?

Que vulto é este sombrio
Gelado, imóvel, na proa?
Dir-se-ia o gênio das sombras
Do inferno sobre a canoa!...

Foi visão? Pobre criança!
À luz, que dos astros coa,
É teu, Maria, o cadáver,
Que desce nesta canoa?

Caída, pálida, branca!...
Não há quem dela se doa?!...
Vão-lhe os cabelos a rastos
Pela esteira da canoa!...

E as flores róseas dos golfos,
— Pobres flores da lagoa,
Enrolam-se em seus cabelos
E vão seguindo a canoa!...


Castro Alves.

Desejo Amante

Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume
Vinha coa Morte, co Ciúme ao lado,
E me bradava: Escolhe, desgraçado,
Queres a Morte, ou queres o Ciúme?

Não é pior daquela fouce o gume
Que a ponta dos farpões que tens provado;
Mas o monstro voraz, por mim criado,
Quanto horror há no Inferno em si resume.

Disse; e eu dando um suspiro: Ah, não m'espantes
Coa a vista dessa fúria!... Amor, clemência!
Antes mil mortes, mil infernos antes!

Nisto acordei com dor, com impaciência;
E não vos encontrando, olhos brilhantes,
Vi que era a minha morte a vossa ausência!


Bocage.

Vaso Chinês

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,

Casualmente, uma vez, de um perfumado

Contador sobre o mármor luzidio,

Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,

Nele pusera o coração doentio

Em rubras flores de um sutil lavrado,

Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,

Quem o sabe?... de um velho mandarim

Também lá estava a singular figura.

Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a,

Sentia um não sei quê com aquele chim

De olhos cortados à feição de amêndoa.


Alberto de Oliveira.

A Alma dos Vinte Anos

A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.

Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui, tornava agora,
Tudo o que ora não sou, me renascia.

Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvarios e com os seus enganos...

Mas ah! quando te foste, novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos.


Alberto de Oliveira.

17 de set. de 2011

Senhora Dona Bahia

"Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,
e é que, quem o dinheiro nos arranca,
nos arranca as mãos, a língua, os olhos."

"Esta mãe universal,
esta célebre Bahia,
que a seus peitos toma, e cria,
os que enjeita Portugal"

"Cansado de vos pregar
cultíssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar
por quem de mim não tem mágoa?
verdades direi como água
porque todos entendais,
os ladinos e os boçais,
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?"


Gregório de Matos.

A Rosa Imaginária

É preciso que fique escrito
antes que a tua baba peçonhenta
nos corrompa a palavra
de ti, só se ouvirá no fim da noite
o ranger de dentes
que teu ódio acalenta
inútil e partido!

Sabes Velho Histérico
o que é Ter 29 anos, e sol
e vida?!

Acordar todas as manhãs
com a rosa imaginária
que não dou ao meu amor??

Sabes Velho Histérico
o que é Ter 29 anos, e sol
e vida?
nessa catacumba
de esqueletos onde moras?!

Sabes Velho Histérico
onde está o ventre de mundo
que seria um dia, o meu?!
Aonde está a criança
que não nasceu
nesse ventre de mundo
que seria, um dia, o meu??

Berra Velho Histérico
ainda
a tua ordem
enquanto não chega o vento!

Berra Velho Histérico
na rádio e no jornal
ainda
a tua ordem
enquanto montado no vento
não chega o fim da noite!

... e a rosa imaginária
que vou dar ao meu amor...


Antônio Cardoso.

Necrologia

A poesia está ai, em qualquer canto
menos nos compêndios de moral
nas regras formais
e nos discursos de inauguração
de bairros oficiais que não existem...

Para exemplo
de pura ocasião
a poesia está, todos os dias
na necrologia dos jornais:
é crianças e mais crianças...
Na relação dos feridos
nas catacumbas das prisões
e nos bancos dos hospitais:
"acometido de doença súbita
no Musseque Lixeira,
foi transportado na ambulância,
Domingos João, que morreu
hoje, Quinta-feira."

A poesia está ai, disfarçada em qualquer canto
menos nos compêndios de moral
nas regras formais
e nos discursos de inauguração
de bairros oficiais que não existem...

E, até por ironia,
está escondida na necrologia dos jornais!...


Antônio Cardoso.

Lápide

Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo
nas pedras do meu Pasto incendiado:
fustiguem-lhe seu Dorso alardeado,
com a Espora de ouro, até matá-lo.

Um dos meus filhos deve cavalgá-lo
numa Sela de couro esverdeado,
que arraste pelo Chão pedroso e pardo
chapas de Cobre, sinos e badalos.

Assim, com o Raio e o cobre percutido,
tropel de cascos, sangue do Castanho,
talvez se finja o som de Ouro fundido

que, em vão – Sangue insensato e vagabundo —
tentei forjar, no meu Cantar estranho,
à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo!


Ariano Suassuna.

O Mundo do Sertão

Diante de mim, as malhas amarelas
do mundo, Onça castanha e destemida.
No campo rubro, a Asma azul da vida
à cruz do Azul, o Mal se desmantela.

Mas a Prata sem sol destas moedas
perturba a Cruz e as Rosas mal perdidas;
e a Marca negra esquerda inesquecida
corta a Prata das folhas e fivelas.

E enquanto o Fogo clama a Pedra rija,
que até o fim, serei desnorteado,
que até no Pardo o cego desespera,

o Cavalo castanho, na cornija,
tenha alçar-se, nas asas, ao Sagrado,
ladrando entre as Esfinges e a Pantera.


Ariano Suassuna.

Ao Amor Antigo

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
a antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.


Carlos Drummond de Andrade.

Minha Musa

Minha musa é a lembrança
Dos sonhos em que eu vivi,
É de uns lábios a esperança
E a saudade que eu nutri!
É a crença que alentei,
As luas belas que amei
E os olhos por quem morri!

Os meus cantos de saudade
São amores que eu chorei,
São lírios da mocidade
Que murcham porque te amei!
As minhas notas ardentes
São as lágrimas dementes
Que em teu seio derramei!

Do meu outono os desfolhos,
Os astros do teu verão,
A languidez de teus olhos
Inspiram minha canção...
Sou poeta porque és bela,
Tenho em teus olhos, donzela,
A musa do coração!

Se na lira voluptuosa
Entre as fibras que estalei
Um dia atei uma rosa
Cujo aroma respirei...
Foi nas noites de ventura,
Quando em tua formosura
Meus lábios embriaguei!

E se tu queres, donzela,
Sentir minh’alma vibrar,
Solta essa trança tão bela,
Quero nela suspirar!
E dá repousar-me teu seio...
Ouvirás no devaneio
A minha lira cantar!


Álvares de Azevedo.

Um Soneto de Bilac

A terra é dura, o sol é bravo; a geada
destruidora; aves más e más formigas
assolam tudo, e a planta acarinhada
mal resiste a essas forças inimigas.

Que importa! Lavra sempre. Não maldigas
a terra ingrata. Não maldigas nada.
Talvez um dia o preço das fadigas
brote do sulco da robusta enxada.

Mas, quanto mais a terra é ingrata, e bravo
o sol e as aves são cruéis, e o resto,
mais valor mostrarás em continuar.

Que é gentileza não viver escravo
da ganância, e plantar só pelo gesto
religioso e sereno de plantar!


Amadeu Amaral.

Crepúsculo Sertanejo

Eis-me na minha velha terreola,
tão clara, tão singela, tão pequena!
Revivo a meninice, a a mesma cena:
Minha casa, o jardim, o teatro, a escola.

Todo passado se me desenrola
em torno, e tudo, como foi, se ordena.
Sorri, infante de rendada gola,
de cabelo doirado e alma serena.

Mas, quem sabe se o tempo que suponho
morto, ainda é presente? se a amargura
de o sentir findo não é mais que um sonho?

E, absorto, penso ouvir, pela janela,
a voz de minha mãe que me procura,
para saber se estou bem perto dela.


Amadeu Amaral.

A Cantiga do Sertanejo

Donzela! Se tu quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração:
E se ouviras o desejo
Do amoroso sertanejo
Que descora de paixão!...

Se tu viesses comigo
Das serras ao desabrigo
Aprender o que é amar...
— Ouvi-lo no frio vento,
Das aves no sentimento,
Nas águas e no luar!...

Ouvi-lo nessa viola,
Onde a modinha espanhola
Sabe carpir e gemer!...
Que pelas horas perdidas
Tem cantigas doloridas,
Muito amor, muito doer...

Pobre amor! o sertanejo
Tem apenas seu desejo
E as noites belas do val!...
Só o ponche adamascado,
O trabuco prateado
E o ferro de seu punhal!...

E tem as lendas antigas
E as desmaiadas cantigas
Que fazem de amor gemer!...
E nas noites indolentes
Bebe cânticos ardentes
Que fazem estremecer!...

Tem mais... na selva sombria
Das florestas a harmonia,
Onde passa a voz de Deus,
E nos relentos da serra
Pernoita na sua terra,
No leito dos sonhos seus!

Se tu viesses, donzela,
Verias que a vida é bela
No deserto do sertão:
Lá têm mais aroma as flores
E mais amor os amores
Que falam do coração!

Se viesses inocente
Adormecer docemente
À noite no peito meu!...
E se quisesses comigo
Vir sonhar no desabrigo
Com os anjinhos do céu!

É doce na minha terra
Andar, cismando, na serra
Cheia de aroma e de luz,
Sentindo todas as flores,
Bebendo amor nos amores
Das borboletas azuis!

Os veados da campina
Na lagoa, entre a neblina,
São tão lindos a beber!...
Da torrente nas coroas
Ao deslizar das canoas
É tão doce adormecer!...

Ah! Se viesses, donzela,
Verias que a vida é bela
No silêncio do sertão!
Ah!... morena, se quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração!

Junto às águas da torrente
Sonharias indolente
Como num seio d’irmã!...
— Sobre o leito de verduras
O beijo das criaturas
Suspira com mais afã!

E da noitinha as aragens
Bebem nas flores selvagens
Efluviosa fresquidão!...
Os olhos têm mais ternura
E os ais da formosura
Se embebem no coração!...

E na caverna sombria
Tem um ai mais harmonia
E mais fogo o suspirar!...
Mais fervoroso o desejo
Vai sobre os lábios num beijo
Enlouquecer, desmaiar!...

E da noite nas ternuras
A paixão tem mais venturas
E fala com mais ardor!...
E os perfumes, o luar,
E as aves a suspirar,
Tudo canta e diz — amor!

Ah! vem! amemos! vivamos!
O enlevo do amor bebamos
Nos perfumes do serão!
Ah! Virgem, se tu quiseras
Ser a flor das primaveras
Que tenho no coração!...


Álvares de Azevedo.

Adeus, Meus Sonhos

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!

Àlvares de Azevedo.

15 de set. de 2011

Cena Íntima

Como estás hoje zangada
E como olhas despeitada
Só p'ra mim!
- Ora diz-me: esses queixumes,
Esses injustos ciúmes
Não têm fim?

Que pequei eu bem conheço,
Mas castigo não mereço
Por pecar;
Pois tu queres chamar crime
Render-me à chama sublime
Dum olhar!

Por ventura te esqueceste
Quando de amor me perdeste
Num sorrir?
Agora em cólera imensa
Já queres dar a sentença
Sem me ouvir!

E depois, se eu te repito
Que nesse instante maldito
- Sem querer -
Arrastado por magia
Mil torrentes de poesia
Fui beber!

Eram uns olhos escuros
Muito belos, muito puros,
Como os teus!
Uns olhos assim tão lindos
Mostrando gozos infindos,
Só dos céus!

Quando os vi fulgindo tanto
Senti no peito um encanto
Que não sei!
Juro falar-te a verdade...
Foi decerto - sem vontade -
Que eu pequei!

Mas hoje, minha querida,
Eu dera até esta vida
P'ra poupar
Essas lágrimas queixosas,
Que as tuas faces mimosas
Vêm molhar!

Sabe ainda ser clemente,
Perdoa um erro inocente
Minha flor!
Seja grande embora o crime
O perdão sempre é sublime
Meu amor!

Mas se queres com maldade
Castigar quem - sem vontade -
Só pecou;
Olha, linda, eu não me queixo,
A teus pés cair me deixo...
Aqui estou!

Mas se me deste, formosa,
De amor na taça mimosa
Doce mel;
Ai! deixa que peça agora
Esses extremos d'outrora
O infiel:

Prende-me... nesses teus braços
Em doces, longos abraços
Com paixão;
Ordena com gesto altivo...
Que te beije este cativo
Essa mão!

Mata-me sim... de ventura,
Com mil beijos de ternura
Sem ter dó,
Que eu prometo, anjo querido,
Não desprender um gemido,
Nem um só!

Casimiro de Abreu.

A Uma Platéia

O cedro foi planta um dia,
Viço e força o arbusto cria,
Da vergôntea nasce o galho;
E a flor p'ra ter mais vida,
Para ser - rosa querida -
Carece as gotas de orvalho.

Com o talento é o mesmo
Quando tímido ele adeja
- Qual ave que se espaneja -
Como a flor, também precisa
Em vez do sopro da brisa
O sopro da simpatia
Que lhe adoce os amargores,
Para em horas de cansaço
Na estrada que vai trilhando
Encontrar de quando em quando
Por entre os espinhos - flores.

E vós que acabais de ouvi-lo
A suspirar nesse trilo
No seu gorjeio primeiro;
Vós, que viste o seu começo.
Dai-lhe essas palmas de apreço
Que é artista e... brasileiro!

Casimiro de Abreu.

Amor é Síntese

Por favor, não me analise
Não fique procurando cada ponto fraco meu.
Se ninguém resiste a uma análise profunda,
Quanto mais eu...

Ciumento, exigente, inseguro, carente
Todo cheio de marcas que a vida deixou
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor.

Amor é síntese
É uma integração de dados
Não há que tirar nem pôr
Não me corte em fatias
Ninguém consegue abraçar um pedaço
Me envolva todo em seus braços
E eu serei o perfeito amor.

Mário Quintana.

12 de set. de 2011

Juriti

Na minha terra, no bulir do mato,
A juriti suspira;
E como o arrulo dos gentis amores,
São os meus cantos de secretas dores
No chorar da lira.

De tarde a pomba vem gemer sentida
À beira do caminho;
— Talvez perdida na floresta ingente —
A triste geme nessa voz plangente
Saudades do seu ninho.

Sou como a pomba e como as vozes dela
É triste o meu cantar;
— Flor dos trópicos — cá na Europa fria
Eu definho, chorando noite e dia
Saudades do meu lar.

A juriti suspira sobre as folhas secas
Seu canto de saudade;
Hino de angústia, férvido lamento,
Um poema de amor e sentimento,
Um grito d’orfandade!

Depois... o caçador chega cantando.
À pomba faz o tiro...
A bala acerta e ela cai de bruços,
E a voz lhe morre nos gentis soluços,
No final suspiro.

E como o caçador, a morte em breve
Levar-me-á consigo;
E descuidado, no sorrir da vida,
Irei sozinho, a voz desfalecida,
Dormir no meu jazigo.

E — morta — a pomba nunca mais suspira
À beira do caminho;
E como a juriti, — longe dos lares —
Nunca mais chorarei nos meus cantares
Saudades do meu ninho!

Casimiro de Abreu.

Clara

Não sabes, Clara, que pena
eu teria se — morena
tu fosses em vez de clara!
Talvez... quem sabe... não digo...
mas refletindo comigo
talvez nem tanto te amara!

A tua cor é mimosa,
brilha mais da face a rosa
tem mais graça a boca breve.
O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
és clara da cor da neve!

A morena é predileta,
mas a clara é do poeta:
assim se pintam arcanjos.
Qualquer, encantos encerra,
mas a morena é da terra
enquanto a clara é dos anjos!

Mulher morena é ardente:
prende o amante demente
nos fios do seu cabelo;
— A clara é sempre mais fria,
mas dá-me licença um dia
que eu vou arder no teu gelo!

A cor morena é bonita,
mas nada, nada te imita
nem mesmo sequer de leve.
— O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
és clara da cor da neve!

Casimiro de Abreu.